sábado, 24 de junho de 2023

Viagens

 Eram outros tempos. Andávamos de carro com logotipo do jornal na porta, tínhamos motorista à disposição, alguns ajudavam, poucos atrapalhavam, não tenho queixa. Anos atrás enquanto procurava notícia na fonte, ou seja, quando trabalhava no que muitos jornalistas insistem em chamar de "o outro lado do balcão", ou seja, fazia a comunicação das empresas chegar aos meios tradicionais, fui obrigado por um motorista a sair do carro alugado por emissora de televisão porque, segundo ele me contou, hoje há uma série de exigências para se transportar alguém, aí incluído em muitos casos o seguro de vida. Portanto, nada de intrusos nesses carros. Como o tempo, os carros também mudaram.

A namorada do fotógrafo desembarcou com ele e como naquele domingo provavelmente não tinha nada a fazer, foi dar uma olhada no trabalho de campo de dois repórteres, eu no texto e o meu amigo na imagem. Ouvi dezenas de pessoas sobre determinado assunto. Uma elegante e bela senhora que deveria ter no mínimo o dobro da minha idade ao ouvir que eu era jornalista fez a seguinte observação: "Ah, você deve conhecer vários países, deve viajar sempre. Deve conhecer lugares badalados, me conta um dia como é viver deste jeito. Creio que é preciso ter certo estilo de vida". 

Lembro ter ouvido a gargalhada da namorada do amigo meu que parecia atravessar cada folha de árvore do parque mais famoso do Brasil. Viajar pelo mundo como jornalista? Até hoje nunca tirei um passaporte. Fiquei por aqui mesmo, sem mágoa nem rancor. 










 

sábado, 2 de abril de 2022

Adelaide Carraro

 Conheci Tereza a caminho de uma universidade, ela estava com um pé do sapato salto alto na mão e disse que iria para uma palestra de seu antigo psicanalista. Eu também ia para o mesmo local, o palestrante era meu amigo há anos e vez ou outra me indicava para algum cliente. Fomos juntos para o mesmo evento. Meses depois descobri que ela morava perto de casa. Na noite de seu aniversário dei uma passada que seria rápida em seu apartamento. Descobri que Tereza era jornalista, revelou que havia terminado um romance vivido com uma pessoa nada recomendável e sua mãe dava sinais de que não estava gostando da conversa.

De repente eis que surge alguém para Tereza me apresentar. 

"Conhece?", ela perguntou. 

"Sim, é a senhora Adelaide Carraro, um bestseller brasileiro, vende como Jorge Amado".

"De onde vocês se conhecem?" - perguntou.

Aí expliquei que trabalhava em um jornal feito no Rio de Janeiro que tinha publicado uma entrevista com uma espécie de "concorrente" dela, Cassandra Rios. Fui à casa de Adelaide Carraro e para dar mais veracidade ao que eu estava contando disse que era uma casa térrea em um bairro nobre na zona norte paulistana. Ela me recebeu no portão e negou qualquer entrevista. Não deu os motivos. E eu respeitei.

Adelaide Carraro era tia de Tereza. Mundo grande, de pequenas coincidências, algumas fatais. Como esta de uma amiga me apresentar sua tia achando que eu nunca imaginaria viver uma cena dessas. 


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Tonico e Tinoco

 Naquele tempo, anos 70 do século passado, não tinham inventado o tal sertanejo universitário (ainda bem) e quem reinava em todas as rádios era uma dupla genuinamente caipira e que estava em alta com programa feito ao vivo na rádio Bandeirantes, no Morumbi, que permaneceu por décadas como os campeões de audiência. Marquei uma entrevista com a primeira voz da dupla, Tonico, que me convidou para que tomasse o café com ele em seu apartamento onde morava com a esposa na rua da Moóca, conhecida via pública da zona leste paulistana. Pensei encontrar também seu irmão Tinoco, mas este aparecia vez ou outra, trocava algumas palavras com a cunhada e se despedia. Perguntei se eles ensaiavam, Tonico disse que não, era pegar a viola e mandar ver. Quis saber se eles tinham alguma dupla que seria seguidora deles, o violeiro respondeu sem vacilar: Chitãozinho e Chororó. "Esses meninos vão longe", disse a respeito da dupla que um deles traria ao mundo mais tarde: a dupla de irmãos Sandy e Júnior. 

Tonico me recebia com café, bolo de milho, suco de laranja e várias histórias. Uma vez apareceu uma foto na revista O Cruzeiro onde a dupla descia de um avião. Quem fez a legenda atribuiu o bimotor à dupla, que nunca desmentiu: "Para nossa imagem ficou o máximo, mas nunca fomos donos de avião, longe disso".  Vi um desses boletos com a renda de um circo e fiquei chocado com valor irrisório ali constatado porque a dupla participava dos resultados das bilheterias.

Nossas sessões duravam vários dias. Em um desses dias levei como convidado o cartunista Jota, José Luiz Pires, chamado de "repórter especula", que publicou matéria de página inteira na Folha de Londrina. Redigi duas entrevistas, que foram publicadas no jornal Movimento, última página, com o título "Da enxada ao rádio". E na última edição do jornal Opinião, com o título "A grande festa dos violeiros".

Lembrei desse episódio ao ouvir de longe os acordes de uma dessas duplas sertanejas universitárias que falavam de traição, ofensa, desprezo e tudo o que há de mais horroroso no ser humano. Tonico e Tinoco e todos aqueles que os seguiram não chegaram a tanto. Acho que eles acreditavam em dias melhores.



segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Ernesto Geisel

 Estava em Brasília, para onde ia invariavelmente todas as semanas como enviado do jornal O Estado de S. Paulo. Cobertura da Constituinte, ou seja, o Congresso se reunia para escrever no que resultou a chamada Constituição Cidadã, de 1988. Parece um tempo distante. Mas, aquele dia prometia porque alguém me avisou que andaria por lá um dos presidentes da ditadura militar, Ernesto Geisel. Ele foi levado ao Congresso pela turma do chamado "Centrão", gente que havia apoiado o presidente José Sarney e que era uma espécie de fiel da balança naquela Casa. Havia gente demais em torno do penúltimo presidente do ciclo militar. Mas como conhecia bem o assessor do senador Marco Maciel, as coisas se tornaram mais fáceis.

Feita a identificação disse ao general Ernesto Geisel: "Presidente, gostaria de conversar com o senhor, falar do seu governo, a meu ver o mais interessante do ciclo militar. Posso ter esperança?". Impávido, no alto de sua experiência e de toda vivência prática, aquele senhor respondeu: "Muito bem, podemos marcar sim, o senhor pode ir à minha residência no Rio de Janeiro?". Respondi que sempre que tinha de ficar mais de um dia no Rio eu me hospedava na casa de um amigo que, por coincidência, morava na mesma rua onde ele vivia, em Copacabana. "Podemos pensar em uma agenda, só que não vai ser entrevista, o senhor irá sem gravador nem papel para anotação. Preciso observar suas ideias, conhecê-lo, fazer um primeiro contato. Creio que nos daremos bem".

Acesso ao presidente Ernesto Geisel não era dos mais difíceis. Mas o primeiro contato acabava de ser feito. Agora era providenciar um horário, dia, viagem, essas coisas. 

Enquanto cobria a Constituinte li, ainda em Brasília, que o presidente Ernesto Geisel havia partido antes do combinado. Coisas da vida.




segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Aloysio Biondi

Trabalhei com ele na sede da Margem Editora, ele como editor do newsletter Relatório Reservado, dirigido aos empresários, e eu responsável pelo jornal alternativo Repórter, editado no Rio de Janeiro pela mesma empresa. Isso nos anos 80 do século passado, bem no centro de São Paulo. Aloysio eu conheci na Gazeta Mercantil, onde passava de vez em quando a convite da colega Carly Baptista, de Brasília, que fazia questão de que nos tornássemos amigos. Por uma dessas coincidências, Aloysio Biondi foi trabalhar na mesma sala imensa que ele infalivelmente fechava a chave altas horas da noite. Eu ficava pouco tempo, a equipe de colaboradores do jornal era pequena e as pautas necessitavam de muito tempo, era se executasse uma missão impossível.
Conheci na época uma certa Márcia Biondi, prima do Aloysio, que trabalhava no escritório do advogado Aldo Lins e Silva, de presos políticos. Mas a conversa com o grande jornalista versava quase sempre sobre nossa família - ele e seus filhos e eu e meus filhos. Nada de grandes assuntos nacionais, isso ele deixava para engordar a pasta que carregava embaixo de um dos braços.
Sei que Aloysio Biondi deixou uma legião de seguidores, gente da mais alta qualidade, na área de Economia. Escreveu um belo e importante livro sobre as privatizações. Era uma daquelas pessoas que achavam que todos deveriam entender dessa importante área, a Economia que ele manjava como poucos.
Não lembro de ver o Aloysio Biondi aborrecido ou frustrado com alguma coisa, ele que pensava no macro, nunca no varejo. Levava a vida como ela deveria ser levada. Dados mais importantes e precisos sobre ele vão ficar para os especialistas. Dele lembro que nos encontramos na porta da Folha de S. Paulo, ambos  subindo à direção, eu com um cliente e ele sozinho com a pasta cheia de recortes, certamente para discutir no mais alto nível os rumos deste País infeliz.



quarta-feira, 10 de julho de 2019

O Velho Passos

O Velho Passos, como o chamávamos na redação do jornal Cidade de Santos nos idos dos anos 70 do século 20, não era propriamente por causa da idade e, sim, pela sua voz sempre calma em todos os momentos e conciliador, sempre com alguma novidade debaixo do braço. Um livro, um panfleto, uma fotografia. Estava um ano à frente na faculdade, para onde íamos juntos à noite. Passávamos no boteco e pedíamos sanduíche de mortadela, que ele mantinha em segredo até que uma colega nossa da chamada elite santista tentou experimentar, não teve coragem e polidamente agradeceu.
Uma manhã bem cedo cheguei na casa do Velho Passos com dezenas de jornais amarrados em uma corda. Era o primeiro número do jornal Versus, que tínhamos feito na casa do idealizador, Marcos Faermann. Já que eu ia para lá, por que não aproveitar e levar para o colega José Meirelles Passos e deixar com ele antes mesmo de o jornal ir para as bancas? Sua mulher falou: "Acorda Zezé porque seu amigo está aí chamando, deve estar fugindo da polícia".
O Velho Passos deu algumas voltas pelo mundo, a começar pela América Latina. Entrevistou dezenas de ditadores e também o legendário escritor Jorge Luiz Borges, cedo àquela altura.
Viveu anos em Washington, onde trabalhou como correspondente de O Globo. Mesmo acometido de uma doença que havia contraído na juventude, 50 anos antes, fase passada em Lorena, interior do Estado de São Paulo, próximo ao Rio de Janeiro, quando ainda era químico, ora veja, ele trabalhou em meio a tantos papéis que tentava decifrar, segredos da Casa Branca.
Com recado do amigo Adelto Gonçalves fui vê-lo no hospital Sírio-Libanês onde ele se encontrou com um dos ditadores de plantão nesta Nuestra América e lembrou que tinha fotos nossa na greve dos metalúrgicos que despontou para o mundo um operário de nome Luis Inácio Lula da Silva, que seria presidente da República por dois mandatos. Nessas fotos aparece um sociólogo que encontramos no ABC e que também sucederia Lula na presidência da República, Fernando Henrique Cardoso. Contou que havia separado as fotografias e que me enviaria dias depois. Não foi possível. Um dia, quem sabe, veremos essas fotografias em alguma galeria por este mundo afora.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Mergulho no Tamanduateí

Toda eleição eu pedia para trabalhar depois de ter votado, cumprido a árdua tarefa, pois era difícil a vida em um cenário onde havia um partido oficial, a Arena dos militares, e a oposição, o MDB do doutor Ulysses. Estávamos em plena ditadura militar. Naquele ano era época de eleições municipais. O editor de Política da Folha, Rolland Marinho Sierra, encomendou uma reportagem sobre as eleições na Baixada Santista, onde eu votava, queria que eu percorresse algumas cidades onde havia começado minha vida profissional. Peguei um ônibus e fui direto à redação do jornal Cidade de Santos, do mesmo grupo de publicações da família Frias. O diretor de redação José Alberto Blandy, meu primeiro chefe em jornal, facilitou as coisas, pediu para todos os correspondentes das cidades vizinhas para darem um panorama geral. Peguei os dados no final da tarde, me despedi e tomei o ônibus na rodoviária rumo a São Paulo.
No caminho entre Santos e São Paulo o mormaço é infernal. Estava quase dormindo quando ouvi gritos vindos de todos os lados. O ônibus havia caído, mergulhado nas águas do rio Tamanduateí. Todos estavam se dirigindo para o final do ônibus e saiam pela janela traseira. Fiz o mesmo. Vi o ônibus mergulhar nas águas sujas do histórico rio e dei sinal ao primeiro táxi que passou. Direto para a redação da Folha, na alameda Barão de Limeira.
A reportagem saiu assinada, do enviado especial, e não comentei com ninguém, nem mesmo em casa com minha mulher e filhos sobre o que tinha acontecido naquele ônibus. Saí ileso daquele mergulho nas águas do Tamanduateí. Minha aventura que nunca escrevi, ficou no silêncio da vida.